Tarja Preta

Curitiba, 23 de novembro de 2012

Quem nunca ouviu falar das famosas "tarjas pretas"? Bem, caso você não tenha ouvido, o que acho difícil, tarja preta é aquela tarja de cor preta (óbvio) encontrada em alguns medicamentos psiquiátricos, onde está escrito "O abuso deste medicamento pode causar dependência". Você não é capaz de imaginar como esta "tarjinha", e uso o diminutivo para desimportizá-la mesmo, é capaz de fazer. Só para dar um exemplo, ela é capaz de fazer com que uma pessoa acometida por sério distúrbio psiquiátrico fuja do psiquiatra como o diabo foge da cruz. O psiquiatra, coitado, é equiparado ao diabo, e a tarja preta à porta do inferno. Assim, continuando, nossa "pessoa acometida" é capaz de levar até 10 anos ou mais, sofrendo, passando pelas mãos de clínicos gerais, de neurologistas, de terapeutas, de vizinhos e amigos, antes de chegar ao consultório psiquiátrico. E pode, ao chegar, constatar, surpresa, que o psiquiatra não lhe prescreve a tão temida "tarja preta". E ele sai, fazendo novo juízo do psiquiatra, não era o que ele pensava, um médico louco que só sabe prescrever tarja preta, e ávido por prescrevê-las ...

 

Pois bem, mas o que é que tem a tal tarja preta que assusta tanto? É a expressão "pode causar dependência". A famosa fama, desculpe, é para enfatizar (famosa fama não é pleonasmo, é recurso estilístico do autor ... gostou dessa?) o quanto a tarja preta já invadiu o consciente coletivo (se existe inconsciente coletivo - Jung que veio com essa - deve existir consciente coletivo) de nosso povo, acho que só perde pro futebol e pro carnaval. Ops! Esqueci da cerveja e da gata que sempre a acompanha, pelos menos nos comerciais ... Bem, como eu dizia, a tal tarja é tão conhecida que as pessoas nem precisam ler o que diz antes: "o abuso deste medicamento". E claro, muito mais, não costumam se perguntar o que significa o tal "abuso". O zé do boteco turbinado é capaz de pensar besteiras ...

 

E nem perguntam ao psiquiatra o que é o tal de "abuso", acho que pensam que o tal abuso é apenas ingerir a "terrível droga causadora de dependência". Mas não é, tomar o medicamento prescrito pelo psiquiatra na dose prescrita não é abuso, é tão somente uso terapêutico. Mas quem nunca ouviu falar de alguém, ou não conhece alguém que toma o tal tarja preta há muitos anos? E aqueles que relatam, dramaticamente, o quanto sofreram para sair das garras do tal tarja preta? E aqueles outros que relatam, também dramaticamente, suas vãs tentativas de se libertar do "vício" da tarja preta e não conseguiram? Você encontra histórias e mais histórias a respeito, quem sabe até daria pra escrever um livro, mas não é este o caso.

 

Sinto-me tentado a explicar o que é abuso, mas vou resistir, poderiam me acusar de estar ensinando a abusarem do tarja preta, eu hein! Fico até imaginando um zé qualquer comentando "aprendi a abusar do tarja preta no blog do Dr. Leocádio". Quem quiser aprender que aprenda sozinho, por sua conta e risco ...

 

Outro sacrificado aqui, pelo consciente coletivo, é o verbo poder. Está escrito "pode" causar dependência, mas o consciente coletivo lê "causa dependência, você está na porta do inferno, fuja enquanto pode, rápido!". O pode aqui, significa uma possibilidade, apenas. da mesma forma que você quando sai de casa, "pode" ser assaltado, pode ser atropelado, pode tropeçar e cair, pode ficar preso no elevador, pode ter um infarto fulminante na rua, no trabalho (como também em casa, até na cama). Então, pode causar dependência é uma mera possibilidade, entre tantas outras mais prováveis, como a de você melhorar fazendo uso adequado do medicamento, conforme orientação médica.

 

Mas a grande vítima aqui, é a tal da "dependência". Todo mundo sabe o que é dependência e todo mundo a teme, e todos fogem dela, de novo, como o diabo foge da cruz. "Eu ficar dependente? Cruz credo - três toques na madeira - cadê madeira?". A "dependência" é automaticamente associada, no consciente coletivo, ao uso de drogas, lícitas ou ilícitas, como álcool, tabaco, maconha, crack, cocaína, etc., pra não falar da cafeína do café e dos refrigerantes, nem do açúcar branco, e nem do chocolate com sua cafeína e o doce mais doce açúcar branco. Então, a dependência é a grande vítima e a grande vilâ.

 

Vítima porque aqui o consciente coletivo passa por cima do fato de que a dependência não é, necessariamente, algo maligno. A dependência assusta o consciente coletivo porque é associada às drogas acima citadas. Mas existem dois tipos de dependência. Vejamos: uma pessoa que esteja fazendo uso de insulina por causa de sua diabete, está dependente da insulina, mas não porque a insulina causou-lhe dependência, e sim porque ela alivia, minimiza, trata uma doença da qual a pessoa é portadora. Temos aqui uma "dependência médica", benigna porque faz parte do tratamento da doença, esta sim, maligna, causadora de sofrimento e até morte. A dependência médica, então, se insere num contexto de progresso de tecnologias de tratamento.

 

A outra dependência, aquela temida pelo consciente coletivo, é a associada às drogas. Neste caso, a dependência não se insere num contexto benéfico e desejável de minimização de sofrimento causado por doença. Em vez disso, a dependência é a própria doença. Por isso coloquei que a dependência é a grande vítima, vítima da confusão de conceitos diferentes: dependência doença (caso das drogas) e dependência médica (caso de tratamento de doenças).

 

Mas o fantasma ainda não foi exorcizado. E aqueles que ficam dependentes e nunca mais conseguem parar com os tarjas pretas? Bem, em primeiro lugar temos que considerar que existem quadros psiquiátricos crônicos que exijem uso continuado e vitalício de alguns medicamentos, entre os quais podem estar os de tarja preta. Nestes casos, não se trata de as pessoas não conseguirem parar, trata-se de precisarem do medicamento para que sua doença seja controlada, da mesma forma que um hipertenso pode precisar do anti hipertensivo para manter sua pressão arterial em níveis não perigosos. Da mesma forma que diabéticos podem precisar da insulina para manterem seus níveis de glicose em níveis também não perigosos, da mesma forma que pacientes com transtorno bipolar podem precisar, e normalmente precisam, de medicamentos para manterem sua doença sob controle. Em todos estes casos, a "dependência médica" é propiciadora de qualidade de vida, que é, em última análise, o que todos buscamos, de uma forma ou de outra.

E a grande vilâ? Ela, a dependência é tomada como a grande vilã quando ela, pelo contrário, é justamente a condição que vai minimizar sua doença e sofrimento, ou até, eventualmente promover sua cura. Aqui, é como considerar o bombeiro com suas mangueiras o vilão por estar destruindo um prédio em chamas, quando ele é o agente que está lutando contra o agente destruidor, que é o fogo. O agente destruidor, aqui, é a doença, o bombeiro é o médico e o medicamento a água que flui das caixinhas com as temíveis tarjas pretas.

Mas a questão da dependência é um pouco, não tão pouco, mais complexa, porém aqui no blog, me reservo o direito de me sentir cansado e deixar pra continuar outra hora.

Se você entrou e leu até aqui, agradeço pela sua atenção e pelo seu carinho.

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